De rosto limpo, sem base, sem pó, sem
sombra, sem blush, maquio-me com um sorriso, e deixo pulsar em mim a luz de
esperança alentadora; esperança de que as coisas possam ser melhores a cada
dia. Porque olha, a vida pode ser bela, a vida pode ser boa, mas erros e
contradições fazem parte da natureza humana — e alguns erros custam caro, muito caro. E todos os
dias é necessário aprender a lidar da melhor maneira possível com as próprias
falhas, e assim vai-se aprendendo a encarar a vida de forma mais leve e
despreocupada, sem criar tanto caso de coisas pequenas, sem se deixar sugar por
pessoas de intenções negativas. Existem tantas coisas que, se me acontecessem
há alguns anos, ou há poucos meses, seriam capazes de estragar o meu dia, mas
que agora já não podem me afetar tanto. É que a mente muda de um estado para o
outro e acho que isso ocorre por causa de uma busca constante pela saúde
emocional. Mas não estou dizendo que me insensibilizei para as coisas — estou, em
verdade, me vacinando contra o que não agrega. E a cada dia, tudo se torna mais leve, mais simples, e
as coisas vão melhorando ao ponto de eu não sentir tanto o desespero que
costumava andar ao meu lado todos os dias, no peito sempre apertado e palpitante,
junto com uma raiva contida que, ao menor desagrado, era injustamente atirada
sobre alguém. Meus problemas já não pesam tanto, não são mais capazes de me
definir; porque aprendi, a duras penas, que embora cometa muitas falhas, eu
mesma não sou uma. E é por isso que a cada dia o sol nasce outra vez, a cada
vez uma nova chance de tudo ficar bem. E aquela ansiedade toda, que estava
muito além dos limites do saudável, ainda está comigo sim, mas diminuída e se
enrareceu sua capacidade de me paralisar. E com o tempo vou aprendendo a me
tratar melhor, cultivando a gentiliza dentro de mim e levando-a para os outros
em um reflexo da esperança de evoluir em meus caminhos. Evoluir: palavra que é
tão bela quando seu significado é visto na prática, porque o que evolui é o que
cresce de dentro para fora, e ao crescer se desenvolve em maturidade. E sei
muito bem, apesar de romantizar um pouco as coisas, que a evolução é apenas uma
ferramenta necessária e essencial para a sobrevivência.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
sexta-feira, 15 de dezembro de 2017
Pequenos Lutos
É sofrer a
consequência de um erro que custou caro.
É perder uma
amizade a preço de orgulho.
É o término de um
relacionamento.
É quando um lar
cessa de sê-lo porque você já cresceu demais para caber nele e precisa voar
logo antes que cresça ainda mais e não sobre mais espaço para abrir as suas
asas.
É quando uma
cicatriz faz a integridade de seu corpo cair para noventa e nove por cento, e
quando uma dor ainda não identificada o coloca pronto para aceitar o fato de
que será preciso pegar mais leve nos exercícios impactantes.
É quando uns
quilinhos perdidos voltam, adicionando peso morto ao corpo.
É quando se
conclui o ensino médio e dá-se conta de que o dia a dia não permanecerá o mesmo.
É quando o ano
está para acabar e o ciclo dá seus últimos nós antes do desmanchador de costura
do tempo e destino nos colocar novamente de pé sobre a primeira linha de uma
folha em branco.
É quando um
grande projeto pelo qual se trabalhou durante o ano inteiro finalmente foi realizado
com sucesso, tornando inteiramente desnecessário o processo de preparação.
É quando chega o
aniversário de morte de uma autora favorita que faleceu décadas antes de eu
nascer.
É quando a festa
acaba.
É quando o sol
nasce e se é obrigado a despertar dos sonhos para viver mais um dia, e os
sonhos se tornam apenas vagas lembranças embaçadas.
É quando a
ansiedade sufoca a alma e impede de vivenciar os bons momentos da vida, que vai
passando enquanto vou ficando, presa pelas palpitações que encolhem o peito.
É quando chego no
fim daquela barra de chocolate deliciosa.
É quando a
infância acaba e com ela vai-se embora a fascinação por certas coisas corriqueiras.
É quando termina
o ano em que a maioria dos feriados caiu numa quinta-feira.
É quando sei que
não pude fazer uma gradação.
É quando não se
tem mais notícia de rostos conhecidos e queridos.
É quando, como
agora, sou abatida pelo sono e o ritmo piora.
E é nas pequenas
perdas cotidianas que sinto na boca o sabor amargo de uma amostra da morte e,
embora ela não tenha chegado ainda, sempre dá jeito de estar presente — afinal, a morte faz parte da vida.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2017
Perdido
Um dia, um escritor traduziu os
seus textos para todas as línguas existentes na Terra. Eram tantas palavras se
confundindo em tão ampla mixórdia que, ao terminar, ele já não podia identificar
quais palavras pertenciam à sua língua materna e quais palavras voavam soltas
pelo mundo. O escritor então se esqueceu como se escreve e, não podendo mais
escrever, enlouqueceu, transformando sua vida em meras palavras antigas que se
escondiam em uma gaveta, os papeis a amarelar.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
O Lobo e a Onça
A areia remexida pelo vento galgava uma
íngreme subida até o fim da praia, onde salpicava o macio gramado como
pontinhos brilhantes de poeira no imenso tapete verde. A maresia de um
crepúsculo sossegado enchia o ar, e o sol se punha atrás de nuvens coloridas
pelo arrebol. Era o mês de janeiro, das tão ansiadas férias de verão, e, como
esperado, havia uma grande quantidade de turistas naquela bela praia. O mar era
calmo e seguro; as ondas vinham deitarem-se tranquilamente na areia, sem
rochas, pedras ou quaisquer outras barreiras físicas que as separassem do
grande leito dourado.
Como era chegado o fim do dia, o ambiente
antes apinhado de pessoas esvaziara-se bastante; muitos trabalhadores já haviam
ido embora, e os banhistas não tinham interesse na maré de ondas altas ou no
ambiente frio do começo de noite. O que foi bastante oportuno! Que algazarra
seria se a praia estivesse ainda cheia quando aquelas duas feras surgiram.
Porque ali resolveram aparecer, justo num tempo arriscado de época turística,
dois grandes e temerosos animais.
Primeiro veio a onça, que se aproximou não se
sabe de onde; chegou ali na praia e caminhou silenciosamente nos arredores da
terra arenosa. Depois de andar sobre a grama, se achegou ao mar, os macios
grãos de areia acariciando suas patas fortes e ágeis. Uma peculiaridade do
animal, um traço bem exótico, raríssimo de se ver, era sua total ausência de
pintas na cauda. Todo o corpo era pintado com desenhos negros quase esféricos,
mas um tanto sinuosos, exceto a cauda, que era de um tom âmbar completamente
liso. O animal achegou-se à água, e a espuma das ondas tocou suas patas. Ela se
abaixou por um instante para provar o gostinho do mar. As pontas de seus
bigodes logo se umedeceram, e a onça lambeu os beiços peludos várias vezes para
tirar da língua o gosto salgado da água.
Nisso veio se aproximando outro animal:
um grande lobo rajado se acercava da onça por trás, fazendo o mesmo caminho que
ela antes havia feito. As pegadas do felino, marcas de fortes patas com garras
humildes e discretas — não se deixe enganar, pois, é claro, ele tinha as garras
retraídas ao caminhar — se enterravam ainda mais na areia quando o lobo as
pisava, deixando sulcos muito profundos no chão onde suas unhas grandes e
desajeitadas se afundavam.
A onça logo percebeu o lobo se
aproximando, e volveu-se agilmente para encará-lo nos olhos. O lupino se sentou
sobre as patas traseiras. Não parecia intencionado a lutar; não exalava uma
disposição assassina, ou deixava transparecer uma inclinação violenta ou algo
do tipo. Ele apenas ficou lá, encarando a onça de volta com serenidade. O
felino permanecia em guarda, com as orelhas em pé. Gotículas de água pingavam
de seus bigodes tencionados em um esgar de alerta. E o lobo permanecia calmo,
olhando continuamente para os olhos dourados da outra fera.
E assim se passaram vários minutos,
talvez até uma hora ou duas, os animais petrificados, encarando-se. Era uma
longa disputa de olhares, e quem desviasse primeiro perderia — sendo os
competidores um lobo e uma onça, nenhum aceitaria perder. Eles poderiam ter
ficado parados do mesmo jeito por um tempo indeterminado, dias, semanas, ou até
meses, se não fosse por uma corajosa, ou ingênua menininha que, longe dos pais,
corria faceiramente em direção às feras.
Era uma alegre criança de três anos de
idade. Há pouco tempo, talvez dois anos, aprendera a andar, e agora já possuía
a habilidade de escapar sorrateiramente dos pais sobrecarregados e correr em
direção à praia, lugar que ela sempre imaginara ser muito mais bonito à noite
que durante o dia. Ela sempre tivera a curiosidade de andar na praia à noite, isso
era indubitável. Ao findar do ocaso, ela sempre dizia com seu peculiar sotaque
“criancês”:
“Papai! Mamãe! Vamos lá fora ver a praia.
Tá de noite! De noite!”
Era mesmo uma pena que eles nunca
tivessem tempo para levar a pequena menina para um passeio noturno à beira da
praia. Sempre diziam que estavam ocupados enquanto liam uma coisa ou outra; ou então,
enquanto realizavam serviços domésticos do tipo ingrato, daqueles que se
completa em um dia e, no outro, é preciso fazer tudo de novo, como lavar
vasilhas; ou, pior, enquanto permaneciam ocupadíssimos presos à tela de um
computador, que era o que ocorria com mais frequência. E tudo o que ela queria
era conhecer aquele cenário maravilhoso de quando as estrelas brilham sobre o
mar e as ondas se tornam mais altas, lambendo até a beirada da praia; e nessa
hora, a água não está fria, mas morna, tão gostosa... Isso a menina acabara de
descobrir.
Ela havia feito como os dois animais:
caminhara primeiro sobre a grama, para depois descer pela praia até a beirinha
do mar — se bem que, naquela hora, já não havia tanto caminho para a menina
percorrer, pois as ondas vinham altas de modo a diminuir o tamanho da praia,
cobrindo de água uma grande área.
Os animais ignoravam a maré e permaneciam
quietos onde estavam desde a hora do crepúsculo. A essa altura, a onça estava
quase completamente encoberta pelas ondas incessantes que vinham com mais ânimo
do que durante a calmaria matutina do mar. E o lobo não tinha muito privilégio:
ao passo que o felino estava de costas para a água, ele estava bem de frente, e
as ondas batiam direto no seu peito, respingando gotas salgadas em seus olhos
que começavam a arder.
Que sorte! Dois bichinhos fofos! A menina
aproximou-se dos animais e soltou um gritinho de prazer, o que chamou a atenção
de ambos. Ela havia chegado muito perto, mas mantinha uma distância grande o
suficiente para que as ondas não a tocassem, pois assim não seria arrastada
para o fundo do mar. Tinha apenas três anos, mas não era tola. Aquela menina nascida
no litoral sabia muito bem que algo ruim poderia lhe acontecer caso chegasse
perto demais de ondas violentas como aquelas.
Mas ela não sabia que, pior que as ondas,
eram as duas feras que estavam bem ali, pertinho dela; as duas feras que ela
achava serem dois bichinhos fofos.
Quando a onça percebeu a presença da
menina, depois de ouvir o grito agudo de felicidade que ela havia dado, abanou
ameaçadoramente a cauda sem pintas. O lobo também sabia que a criança estava
ali, atrás dele, mas não se virou para olhar. Estava muito ocupado com o jogo
visual que ele e o felino travavam por algum orgulho selvagem. Não obstante,
visto que ela não iria embora, as duas feras, de mútuo acordo,
interromperam o combate e saíram do alcance das ondas. A menina pulou de
alegria, aumentando ainda mais o sorriso que trazia no rosto.
Na casa dela, lugar que ela deixara há
alguns minutos, os pais foram tomados por um desagradável aperto no peito ao
darem pela falta da filha. A mãe, uma jovem e bela mulher, já havia procurado
pela pequena por toda a casa, com a ajuda do pai. Ela chegara àquele ponto de
total desespero pelo qual uma pessoa passa quando perde algo tão precioso
quanto um filho — ela havia sucumbido às lágrimas, e limpava o rosto obstinadamente
enquanto gritava o nome da menina. Mas seu rosto continuava sempre úmido, pois
por mais que ela insistisse em enxugar as lágrimas, elas persistiam em cair.
Os pais já haviam procurado pela casa
inteira umas cinco vezes quando, de súbito, veio à mãe um sentimento forte —
uma certeza. Sim, certeza! Ela sabia,
tinha certeza de onde a menina estava.
— Ed! — disse. — Ed, eu sei onde ela
está!
A mãe aflita não precisou dizer mais uma
palavra. O pai percebera ao olhar nos olhos dela. Ainda assim, ela terminou o
que dizia, mas sua voz foi acompanhada pela dele:
— Na praia! — os dois disseram em
uníssono.
Saíram de casa o mais depressa que
puderam, e sequer trancaram a porta da frente, apenas a encostaram, e desataram
a correr pela areia.
Enquanto isso, a filha, maravilhada pela
calma dos dois “bichinhos fofos”, caminhava cegamente em direção aos animais. O
lobo continuava demonstrando a mesma serenidade pelo olhar, mas a onça... Os
olhos dela rutilavam amiúde com uma luz sinistra, em um tom anormal de vermelho
que se sobressaía na noite como o arrebol se sobressai no céu. A criança chegou
perto, perto e mais perto da onça.
A tensão parecia crescer entre os
animais. A menina, cega pelo seu deslumbre, aproximou-se o suficiente do felino
para que pudesse tocar seu focinho. E então, num gesto brincalhão e
inconsequente...
...ela puxou com toda a força que possuía
em suas mãos infantis os bigodes da onça.
O
animal repuxou os beiços em um esgar de raiva, e mostrou os dentes para a
menina, o que apenas fez com que ela desse outro daqueles altos gritinhos
inocentes de alegria. A onça abriu a boca em um rugido, exibindo duas fileiras
de presas afiadíssimas, e salientou as garras, preparando-se para o ataque.
Com uma pata, ela arranhou a saia da
pequena, rasgando o tecido de modo a prender nele as poderosas garras. O felino
puxou o vestido com violência, o que fez a menina se desequilibrar e cair.
Afundou a pata na areia de modo a mantê-la presa pela barra do vestido,
e levantou a outra pata para rasgar aquele delicado rostinho e dilacerar
aquelas mãos que se atreveram a puxar seus bigodes.
A onça rugiu e desceu a pata mirando o
rosto da menina.
Porém, uma fração de segundo antes que
ela pudesse provocar qualquer ferimento, o lobo aparou o golpe com seu flanco,
sendo atingido pelas garras afiadas. Mas não foi ferido: ele subitamente parecia
ter crescido, pois estava três vezes maior que a onça; e seu pelo, que
aparentemente tornara-se mais espesso, recebeu sozinho o golpe, protegendo a
pele do lupino. A violenta investida resultou apenas em um serviço assimétrico
de tosa.
A onça e o lobo lutaram ferozmente por
alguns segundos, mas logo o lobo subjugou a adversária — afinal, estava três
vezes maior que ela. Depois de uma série de mordidas e patadas, a onça aceitou
sua derrota e, resignada, colocou-se a assistir às ações do lobo. A menina
chorava de dor. Quando a onça rasgou seu vestido, as pontas das garras
atingiram de raspão a sua perna. Ela estava sentada, e as gotas de sangue
escorriam vagarosamente das feridas em sua pele, pintando a areia ao redor de
um intenso tom bordô. A ferida estava salpicada de grãos de areia que só faziam
arder.
O choro estridente da menina foi o alarme
que os pais precisavam para encontra-la. Correram direto para onde ela estava,
mas ao avistarem os dois animais, estacaram petrificados pelo medo.
— Ed! Ed, o que vamos fazer? — disse a
mãe.
Ela continuava a chorar, e as feras
encaravam obstinadamente os dois recém-chegados. Aliás, diga-se por dizer, os
dois animais eram mesmo muito bons nisso.
— Calma — disse o pai. — Não faça nenhum
movimento brusco. Vamos andar com calma até a Ariel, pegá-la e ir embora daqui.
Vamos embora devagar enquanto ligamos para o controle de animais.
Os dois deram as mãos, mas a mãe
continuava muito assustada ante a ideia de perder a filha para duas feras. E
eles não tinham nada para se defender — um porrete, uma pedra, um pedaço de
pau, uma faca, ou o que fosse. Estavam completamente inermes, de mãos abanando.
Eles começaram a se aproximar da menina,
sempre de frente para os animais. Ambos o pai e a mãe suavam frio, mas ele
parecia ter maior autocontrole que ela. Ainda estavam a uns oito metros da
menina quando a mulher, não podendo mais se conter, soltou a mão do pai e
disparou em direção à filha.
— Zima! NÃO!
A onça foi ao encalço dela, engajando-se
no que foi uma curta perseguição: o lobo, tendo vencido a luta, mais uma vez
atrapalhou os planos da adversária ao colocar-se entre o felino e a mulher. A
mãe havia se encolhido em desespero ao ver a onça saltando em sua direção. Em
um reflexo, se agachou de costas para o animal e fechou os olhos, esperando
pelo momento em que sua carne seria rasgada por garras e presas assassinas...
Mas esse momento não chegou.
— Zima! — o homem correu em direção à
mulher e a ajudou a se levantar, e, amparando-a, caminhou nervosamente em
direção à filha. Porém, ele não pôde alcança-la, pois assim como fizera com a
onça, o lobo colocou-se entre a menina e os pais. O lupino volveu-se para a
menina, posicionando-se de costas para o casal e para a onça que, submissa pela
derrota, apenas observava.
Ele se aproximou da criança devagar.
Farejou-a, cauteloso, e tocou a testa dela com a ponta do focinho. Ela
interrompeu o seu choro, curiosa com o ato de gentileza do “bichinho” que já
não parecia tão “fofo” assim. O lobo apenas ficou ali, parado, enquanto a
menina aos poucos tomava liberdade com ele. Ela o acariciava de leve, para
depois ir se tornando mais intensa. Deu uma puxada sutil nos pelos do animal,
que continuou sossegado. Então, gargalhou alegremente e deu um leve tapa no
focinho do lobo em um gesto de carinho.
Os pais dela observavam a cena com a
respiração entalada sofregamente na garganta.
Ela se levantou, esquecendo-se
momentaneamente da ferida em sua perna, e passou os braços em volta do pescoço
do lobo, abraçando-o. Ele se abaixou e deitou o focinho sobre as patas para que
a menina subisse em seu pescoço, e assim ela fez. Pois o lobo se levantou e
caminhou devagar, mas a passos firmes, até o casal. Quando já não existia
distância entre a fera e os pais, o animal abaixou-se novamente para que a
criança pudesse descer, e quando ela saltou para a areia, sentiu de chofre a
dor de sua ferida voltar com toda força. A perna agadanhada não conseguiu
sustenta-la e ela caiu de rosto na areia. Começou a chorar, e o pai apanhou-a
do chão.
Os três foram embora, e sabiam que os
olhos dos animais continuaram cravados em suas costas mesmo depois que
ultrapassaram a linha do horizonte. Porém, antes que isso acontecesse, a mãe espiou
atrás de si uma vez. E seus olhos encontraram diretamente os olhos do lobo, que
não havia parado de encará-la por um segundo. A onça também a fitava, com cara
de poucos amigos. Sabe, dizendo só por dizer — aliás, melhor, apenas repetindo
o que eu havia dito antes, fato que me parece bastante interessante — aquelas
duas feras eram realmente muito boas em jogos de olhares.
A mãe, ao encontrar olhares com o lobo, cambaleou
completamente aparvalhada por alguns momentos. É que os olhos dele pareceram normais
por um instante; mas ela se distraiu, piscando por uma fração de segundo, e
quando o encarou novamente, os olhos dele não se pareciam com olhos
propriamente ditos; a córnea, outrora branca, assumira um intenso tom âmbar, e
o animal não mais possuía pupilas. Em lugar delas, seus olhos amarelados se
forraram por vários pontinhos pretos, bem menores que uma pupila normal, que se
assimilavam às pintas que forram a pelagem de uma onça. E, depois de piscar,
quando a mulher abriu novamente os olhos, ela não pôde ver a onça em lugar
algum.
A Trilha
Tenho sonhos, faço planos, vivo a
vida buscando o meu melhor, e é isso o que importa, sempre dar o meu melhor,
sem medir esforços. Imagino um futuro, e a vida inteira fui assim — às vezes
sinto saudades dos futuros que nunca se tornaram realidade. Ainda assim, o que
me aguarda no amanhã permanece um mistério, justamente por não existir no
presente. Viver o agora me organizando para o depois é como escolher um destino
e trilhar um caminho de acordo com ele, porém sem jamais saber o que poderei
encontrar ao alcançar o destino almejado. Porque lugares mudam, pessoas mudam,
há um tom de efemeridade nas coisas da vida que não permite conhecer com
certeza o que me aguarda no amanhã. E assim vou caminhando: sigo a trilha da
vida sem poder enxergar o que está no final — afinal, se eu enxergasse, que
graça teria?
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
domingo, 24 de setembro de 2017
Aprendendo a voar
Calma. A ansiedade que se acumula no dia a
dia junto com o estresse me arrebata. São dezenas de coisas para fazer, com
apenas vinte e quatro horas ao dia, e muitas vezes essas coisas vão ficando
para depois, amontoadas sobre as horas que passam e se tornam poeira nos móveis.
Teias de aranha se formam sobre projetos antigos que, por perfeccionismo, ansiedade
e medo, nunca foram para frente. Passo então a trabalhar este defeito chamado
deixar acumular a matéria quando eu poderia estar estudando. Esta vida de
procrastinação, quando ver séries deixa de ser algo gostoso para momentos de
lazer e passa a ser uma atividade carregada de preocupação —
porque chega um momento em que deixo tanta matéria se acumular que isso se
torna um peso sobre meus ombros que não me deixa nunca, nem mesmo durante o
sono, e então todos os momentos bons da minha vida que eram para ser leveza se
tornam um fardo carregado de preocupação. E chega mesmo a um ponto em que as
coisas me saem do controle: não apenas a matéria se acumula, mas aquelas coisas
que eu queria fazer vão ficando para depois, e as mágoas vão se acumulando
também, porque deixo para resolvê-las depois, e o amor vai passando e eu vou
ficando, deixando juntar tudo aquilo que não presta mais enquanto vejo me
escapar por entre os dedos tudo aquilo que eu mais queria. Neste mundo de
passarinhos, eu sou a única pessoa que fica atravancando meu caminho. Aprender
a observar isso e ter consciência desse problema é algo muito bom. Agora posso
tomar medidas contra ele. Chama-se procrastinação. E com ele vem a ansiedade,
que anda de mãos dadas com o medo de tudo dar errado. Talvez dê errado mesmo,
mas se tudo der certo, deu, e se não der, fica ao menos o aprendizado sobre o
que funciona e o que não gira neste mundo em que deveríamos aprender a voar. E
as pessoas que têm hábito de procrastinação vão deixando se atrofiar suas asas,
sempre esperando para alcançar o seu potencial depois, e esse potencial não
chega nunca para quem só fica parado porque vive com medo. Não deixe nunca o
medo do que os outros vão pensar cortarem suas asas. Não deixe a ansiedade te
prender, e mesmo que sinta medo, vá buscar o que quer. Amém?
sábado, 23 de setembro de 2017
Cão-lobo
A menina espiava a rua pela janela de sua
sala de aula enquanto o professor vinha ausente por estar atrasado. Assim
passaram-se poucos, mas longos minutos, a sala em completa balbúrdia e a menina
calada, contemplativa, observando os efeitos de um breve período de tempo sobre
a rua monótona e vazia.
Decorrido algum tempo, um cachorro
penetrou a rua timidamente, andando devagar. As orelhas caídas, olhar lânguido
e o rabo abanando com feliz esperança de encontrar comida nas sarjetas imundas
da rua cinzenta. Não o encontrou e, enquanto procurava, a menina assistia a seus
passos admirada com seu porte lupino e sua alvura imaculada de uma pureza
angelical.
Sentiu então a menina súbito desejo
incontrolável de mostrar sua descoberta ao mundo: um lobo da cor das mais
calmas nuvens rasgava sacolas com seus caninos afilados em busca de
subsistência; um animal tão belo e magnífico abandonado ao léu sem receber de
ninguém o amor que tanto merecia devido à extrema pureza que trazia em si.
E desviou seu olhar para o interior da
sala de aula, mas todos estavam tão ocupados que não poderiam ouvi-la. Em um
canto da sala, um pequeno grupo de meninas tirava inúmeras fotos com um celular
de última geração; noutro, meninos brincavam de esgrima com floretes graduados,
de plástico, feitos originalmente para medir; mais próximos da porta, dois
garotos encrenqueiros cochichavam segredos que eram seus planos para suas
próximas vítimas. E, com a sonda de seu olhar, viu que ninguém atenderia a seu
chamado. Diriam: “Para quê?”, e ela responderia: “Para ver um cachorro”, ao que
responderiam, “Ah, tenho mais o que fazer”.
E continuou então a seguir o cão com os
olhos, sozinha. Queria mostra-lo a mais alguém, mas ninguém queria ver. E o cão
tropeçou nas próprias patas ao se desviar de um carro, um perigo, uma máquina
de matar feita pelos humanos. A menina andava de carro todos os dias, mas o
cachorro jamais entraria em um. E nem deveria entrar. Um cão tão alvo, tão
forte, tão grande, tão lobo, era sempre mais que um carro. Não importando a cor
do carro. Mesmo um preto, de luxo, ainda seria menos que o pobre cão que
procurava o seu lugar. Mal sabia ele que tinha um: poderia morar no olhar da
menina, se quisesse. A menina, que estava sozinha, mesmo cercada de tanta
gente. A menina, que era a única a descobrir os anseios do cão. Ela, que era a
única a ver um grande lobo albino no centro, no coração, na bagunça da cidade —
onde as escolas se situavam. E da janela de uma delas, um único rosto olhava o
céu. Porque o cão-lobo estava no céu; pisava nas nuvens que forravam a calçada
onde, no dia anterior, um velhinho distribuíra algodão doce para os passantes
que descartaram os restos do açúcar algodoado no chão.
Agora o professor entrava na sala. A
menina teria que voltar ao seu lugar e se despedir do cão-lobo. Ela o fez com
um último olhar e profunda admiração no peito. Não era admiração pelas nuvens
lá embaixo, enegrecidas pela sujeira das horas. Tampouco pelo porte ou pela
alvura do cão. A menina não se admirava da coragem, da solidão ou da sabedoria
do lupino. Ela se admirava porque, de todas as trinta pessoas que estavam ali,
apenas ela viu o cão-lobo na rua vazia. E justamente por estar vazia, ninguém
na rua viu o animal, porque não havia ninguém para vê-lo. E um imenso
sentimento de singularidade encheu o coração da menina. E era por esse
sentimento que ela se admirava: o único cão-lobo albino da cidade era dela. Só
dela.
sexta-feira, 22 de setembro de 2017
Gratidão
Eu me lembro da primeira vez que pisei para valer em um estúdio de dança. Da primeira vez que levei a coisa a sério. Eu era uma completa noob na época, com apenas resquícios de uma brincadeira de criança na memória. Da época que eu dançava ballet apenas por diversão. Mas, Deus, queira o que quisesse, no ano passado não foi apenas por diversão que eu procurei um estúdio. É que faltava algo em mim. Faltava um pedacinho da minha alma que eu havia deixado caído pelo caminho. E eu passei anos sem saber que o que me faltava era dançar. Como pode alguém passar pela vida e ignorar a arte da dança? Eu me lembro do meu primeiro dia de aula depois de anos de sedentarismo. Lembro-me da professora me falando que seria melhor eu dar um passo atrás e começar de uma classe menos avançada, ou eu poderia me frustrar. Fiquei agradecida por ter se preocupado comigo, mas mal sabia ela que não haveria frustração alguma para mim. Ao me ingressar em um estúdio de dança, o meu objetivo não era pegar a frente do palco, fazer as piruetas mais difíceis ou dançar solos mirabolantes. O que eu queria era apenas aprender a dançar. Conhecer o que é deixar a música fluir através de mim e me deixar conduzir por ela. E acabou que eu aprendi bem mais do que esperava. Tive mais oportunidades do que imaginava. E lá, contaram comigo como eu nunca imaginei que contariam. Deram-me um espaço maior do que eu imaginava que merecia. Deram-me uma chance.
Obrigada por tudo.
Imperfeitos lamentos
Todo mundo lida bem com os próprios
defeitos. Menos eu. Eu não me aceito, queria ser perfeita. Torno-me incapaz de
encarar minhas falhas, de reconhecer meus erros, porque essa busca pela
perfeição está me consumindo por dentro. Quando perco, não consigo admitir a
derrota — peço sempre uma revanche para a vida, mas acontece que a vida não é
feita de segundas chances. Algumas pessoas até pensam que isso é arrogância
minha, e que não suporto admitir meus erros por orgulho; porém, o que acontece
é o contrário: por dentro sou tão insegura que me deixaria engolir pelo mundo,
tendo a minha alma subtraída e desfigurada por tudo o que me cerca caso não
agisse com esta falsa fachada de arrogância. Ela não passa de uma forma de
proteger minha identidade. Forço-me a caminhar de cabeça erguida, nariz em pé e
com o peito cheio porque, se não o fizesse, seria derrubada pelo peso que
descansa sobre meus ombros, e então não seria capaz sequer de colocar um pé à
frente do outro. Costumo fingir que sou perfeita porque é isso que minha alma
agonizante queria que meu corpo fosse. E tenho tanta dificuldade em admitir
meus erros para os outros porque não suporto enxergar em mim meus defeitos que
me levam a cometê-los. E quando alguém além de mim se apercebe dos meus
defeitos, passo a ser incapaz de mentir para mim mesma, fingindo que eles não
são reais. A maioria das pessoas lida bem com seus defeitos, mas não eu. E essa
minha tragédia de não saber me aceitar é o que me leva à minha batalha perdida
pela perfeição.
domingo, 10 de setembro de 2017
A Poesia das Cores
Encaro o mundo através da janela da minha
casa e enxergo nuvens brancas na imensidão do céu azul. De pé no declive de um
morro, e cercada por montanhas altas, respiro e sinto as cores em toda a sua
intensidade. Lá fora, o sol se prepara para partir, lavando as árvores com seu
brilho caliente do fim de um dia de primavera. Percebo nas cores sentimentos, e
sentimentos são prova taxativa de que existe a vida em pleno vigor. As nuvens,
alvas e imaculadas, me passam, por serem brancas, umas sensação de liberdade —
porque o branco é a única cor que tem a liberdade de ser a cor que quiser. E se
todas as cores moram no branco, então essa cor pode bem ser o espectro das
emoções humanas, de todos os sentimentos que temos a capacidade de vivenciar.
Por que algumas pessoas tornam-se apáticas? Perco-me em questionamentos e
dúvidas enquanto divago sobre a complexidade de ser. E tomo para mim o branco
como a cor representativa da liberdade e da plenitude de vida; que, se na pele
as cores nada significam além de determinação genética, na alma elas transbordam de
significados mais diversos e abrangentes. E se a lua, que em noites comuns é
alva, consegue despir-se de sua brancura e trajar um vestido amarelo,
alaranjado ou vermelho, evento de noites raras, isso é porque o branco dá
liberdade para ela. Porém, como é impossível a existir a perfeição, o branco em
si não é inteiro; há uma cor que nele não se cabe, e essa cor é o preto — assim
como da lua não sai um único ponto de escuridão. Enquanto isso, ela precisa da
escuridão para brilhar, porque claro e escuro se completam, as cores se
completam, assim como os sentimentos agradáveis juntam-se em coesão com os
menos palatáveis para formar uma consciência vibrante em vida. E, à medida que
o sol vai indo embora, observo as nuvens assumirem diversos tons de vermelho, alaranjado, rosa, azul, e roxo; e vejo nelas uma infinita poesia.
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