sábado, 23 de setembro de 2017

Cão-lobo

      A menina espiava a rua pela janela de sua sala de aula enquanto o professor vinha ausente por estar atrasado. Assim passaram-se poucos, mas longos minutos, a sala em completa balbúrdia e a menina calada, contemplativa, observando os efeitos de um breve período de tempo sobre a rua monótona e vazia.
      Decorrido algum tempo, um cachorro penetrou a rua timidamente, andando devagar. As orelhas caídas, olhar lânguido e o rabo abanando com feliz esperança de encontrar comida nas sarjetas imundas da rua cinzenta. Não o encontrou e, enquanto procurava, a menina assistia a seus passos admirada com seu porte lupino e sua alvura imaculada de uma pureza angelical.
      Sentiu então a menina súbito desejo incontrolável de mostrar sua descoberta ao mundo: um lobo da cor das mais calmas nuvens rasgava sacolas com seus caninos afilados em busca de subsistência; um animal tão belo e magnífico abandonado ao léu sem receber de ninguém o amor que tanto merecia devido à extrema pureza que trazia em si.
      E desviou seu olhar para o interior da sala de aula, mas todos estavam tão ocupados que não poderiam ouvi-la. Em um canto da sala, um pequeno grupo de meninas tirava inúmeras fotos com um celular de última geração; noutro, meninos brincavam de esgrima com floretes graduados, de plástico, feitos originalmente para medir; mais próximos da porta, dois garotos encrenqueiros cochichavam segredos que eram seus planos para suas próximas vítimas. E, com a sonda de seu olhar, viu que ninguém atenderia a seu chamado. Diriam: “Para quê?”, e ela responderia: “Para ver um cachorro”, ao que responderiam, “Ah, tenho mais o que fazer”.
      E continuou então a seguir o cão com os olhos, sozinha. Queria mostra-lo a mais alguém, mas ninguém queria ver. E o cão tropeçou nas próprias patas ao se desviar de um carro, um perigo, uma máquina de matar feita pelos humanos. A menina andava de carro todos os dias, mas o cachorro jamais entraria em um. E nem deveria entrar. Um cão tão alvo, tão forte, tão grande, tão lobo, era sempre mais que um carro. Não importando a cor do carro. Mesmo um preto, de luxo, ainda seria menos que o pobre cão que procurava o seu lugar. Mal sabia ele que tinha um: poderia morar no olhar da menina, se quisesse. A menina, que estava sozinha, mesmo cercada de tanta gente. A menina, que era a única a descobrir os anseios do cão. Ela, que era a única a ver um grande lobo albino no centro, no coração, na bagunça da cidade — onde as escolas se situavam. E da janela de uma delas, um único rosto olhava o céu. Porque o cão-lobo estava no céu; pisava nas nuvens que forravam a calçada onde, no dia anterior, um velhinho distribuíra algodão doce para os passantes que descartaram os restos do açúcar algodoado no chão.
      Agora o professor entrava na sala. A menina teria que voltar ao seu lugar e se despedir do cão-lobo. Ela o fez com um último olhar e profunda admiração no peito. Não era admiração pelas nuvens lá embaixo, enegrecidas pela sujeira das horas. Tampouco pelo porte ou pela alvura do cão. A menina não se admirava da coragem, da solidão ou da sabedoria do lupino. Ela se admirava porque, de todas as trinta pessoas que estavam ali, apenas ela viu o cão-lobo na rua vazia. E justamente por estar vazia, ninguém na rua viu o animal, porque não havia ninguém para vê-lo. E um imenso sentimento de singularidade encheu o coração da menina. E era por esse sentimento que ela se admirava: o único cão-lobo albino da cidade era dela. Só dela.

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