domingo, 24 de setembro de 2017

Aprendendo a voar

     Calma. A ansiedade que se acumula no dia a dia junto com o estresse me arrebata. São dezenas de coisas para fazer, com apenas vinte e quatro horas ao dia, e muitas vezes essas coisas vão ficando para depois, amontoadas sobre as horas que passam e se tornam poeira nos móveis. Teias de aranha se formam sobre projetos antigos que, por perfeccionismo, ansiedade e medo, nunca foram para frente. Passo então a trabalhar este defeito chamado deixar acumular a matéria quando eu poderia estar estudando. Esta vida de procrastinação, quando ver séries deixa de ser algo gostoso para momentos de lazer e passa a ser uma atividade carregada de preocupação porque chega um momento em que deixo tanta matéria se acumular que isso se torna um peso sobre meus ombros que não me deixa nunca, nem mesmo durante o sono, e então todos os momentos bons da minha vida que eram para ser leveza se tornam um fardo carregado de preocupação. E chega mesmo a um ponto em que as coisas me saem do controle: não apenas a matéria se acumula, mas aquelas coisas que eu queria fazer vão ficando para depois, e as mágoas vão se acumulando também, porque deixo para resolvê-las depois, e o amor vai passando e eu vou ficando, deixando juntar tudo aquilo que não presta mais enquanto vejo me escapar por entre os dedos tudo aquilo que eu mais queria. Neste mundo de passarinhos, eu sou a única pessoa que fica atravancando meu caminho. Aprender a observar isso e ter consciência desse problema é algo muito bom. Agora posso tomar medidas contra ele. Chama-se procrastinação. E com ele vem a ansiedade, que anda de mãos dadas com o medo de tudo dar errado. Talvez dê errado mesmo, mas se tudo der certo, deu, e se não der, fica ao menos o aprendizado sobre o que funciona e o que não gira neste mundo em que deveríamos aprender a voar. E as pessoas que têm hábito de procrastinação vão deixando se atrofiar suas asas, sempre esperando para alcançar o seu potencial depois, e esse potencial não chega nunca para quem só fica parado porque vive com medo. Não deixe nunca o medo do que os outros vão pensar cortarem suas asas. Não deixe a ansiedade te prender, e mesmo que sinta medo, vá buscar o que quer. Amém?

sábado, 23 de setembro de 2017

Cão-lobo

      A menina espiava a rua pela janela de sua sala de aula enquanto o professor vinha ausente por estar atrasado. Assim passaram-se poucos, mas longos minutos, a sala em completa balbúrdia e a menina calada, contemplativa, observando os efeitos de um breve período de tempo sobre a rua monótona e vazia.
      Decorrido algum tempo, um cachorro penetrou a rua timidamente, andando devagar. As orelhas caídas, olhar lânguido e o rabo abanando com feliz esperança de encontrar comida nas sarjetas imundas da rua cinzenta. Não o encontrou e, enquanto procurava, a menina assistia a seus passos admirada com seu porte lupino e sua alvura imaculada de uma pureza angelical.
      Sentiu então a menina súbito desejo incontrolável de mostrar sua descoberta ao mundo: um lobo da cor das mais calmas nuvens rasgava sacolas com seus caninos afilados em busca de subsistência; um animal tão belo e magnífico abandonado ao léu sem receber de ninguém o amor que tanto merecia devido à extrema pureza que trazia em si.
      E desviou seu olhar para o interior da sala de aula, mas todos estavam tão ocupados que não poderiam ouvi-la. Em um canto da sala, um pequeno grupo de meninas tirava inúmeras fotos com um celular de última geração; noutro, meninos brincavam de esgrima com floretes graduados, de plástico, feitos originalmente para medir; mais próximos da porta, dois garotos encrenqueiros cochichavam segredos que eram seus planos para suas próximas vítimas. E, com a sonda de seu olhar, viu que ninguém atenderia a seu chamado. Diriam: “Para quê?”, e ela responderia: “Para ver um cachorro”, ao que responderiam, “Ah, tenho mais o que fazer”.
      E continuou então a seguir o cão com os olhos, sozinha. Queria mostra-lo a mais alguém, mas ninguém queria ver. E o cão tropeçou nas próprias patas ao se desviar de um carro, um perigo, uma máquina de matar feita pelos humanos. A menina andava de carro todos os dias, mas o cachorro jamais entraria em um. E nem deveria entrar. Um cão tão alvo, tão forte, tão grande, tão lobo, era sempre mais que um carro. Não importando a cor do carro. Mesmo um preto, de luxo, ainda seria menos que o pobre cão que procurava o seu lugar. Mal sabia ele que tinha um: poderia morar no olhar da menina, se quisesse. A menina, que estava sozinha, mesmo cercada de tanta gente. A menina, que era a única a descobrir os anseios do cão. Ela, que era a única a ver um grande lobo albino no centro, no coração, na bagunça da cidade — onde as escolas se situavam. E da janela de uma delas, um único rosto olhava o céu. Porque o cão-lobo estava no céu; pisava nas nuvens que forravam a calçada onde, no dia anterior, um velhinho distribuíra algodão doce para os passantes que descartaram os restos do açúcar algodoado no chão.
      Agora o professor entrava na sala. A menina teria que voltar ao seu lugar e se despedir do cão-lobo. Ela o fez com um último olhar e profunda admiração no peito. Não era admiração pelas nuvens lá embaixo, enegrecidas pela sujeira das horas. Tampouco pelo porte ou pela alvura do cão. A menina não se admirava da coragem, da solidão ou da sabedoria do lupino. Ela se admirava porque, de todas as trinta pessoas que estavam ali, apenas ela viu o cão-lobo na rua vazia. E justamente por estar vazia, ninguém na rua viu o animal, porque não havia ninguém para vê-lo. E um imenso sentimento de singularidade encheu o coração da menina. E era por esse sentimento que ela se admirava: o único cão-lobo albino da cidade era dela. Só dela.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Gratidão

      Eu me lembro da primeira vez que pisei para valer em um estúdio de dança. Da primeira vez que levei a coisa a sério. Eu era uma completa noob na época, com apenas resquícios de uma brincadeira de criança na memória. Da época que eu dançava ballet apenas por diversão. Mas, Deus, queira o que quisesse, no ano passado não foi apenas por diversão que eu procurei um estúdio. É que faltava algo em mim. Faltava um pedacinho da minha alma que eu havia deixado caído pelo caminho. E eu passei anos sem saber que o que me faltava era dançar. Como pode alguém passar pela vida e ignorar a arte da dança? Eu me lembro do meu primeiro dia de aula depois de anos de sedentarismo. Lembro-me da professora me falando que seria melhor eu dar um passo atrás e começar de uma classe menos avançada, ou eu poderia me frustrar. Fiquei agradecida por ter se preocupado comigo, mas mal sabia ela que não haveria frustração alguma para mim. Ao me ingressar em um estúdio de dança, o meu objetivo não era pegar a frente do palco, fazer as piruetas mais difíceis ou dançar solos mirabolantes. O que eu queria era apenas aprender a dançar. Conhecer o que é deixar a música fluir através de mim e me deixar conduzir por ela. E acabou que eu aprendi bem mais do que esperava. Tive mais oportunidades do que imaginava. E lá, contaram comigo como eu nunca imaginei que contariam. Deram-me um espaço maior do que eu imaginava que merecia. Deram-me uma chance.
      Obrigada por tudo.

Imperfeitos lamentos

      Todo mundo lida bem com os próprios defeitos. Menos eu. Eu não me aceito, queria ser perfeita. Torno-me incapaz de encarar minhas falhas, de reconhecer meus erros, porque essa busca pela perfeição está me consumindo por dentro. Quando perco, não consigo admitir a derrota — peço sempre uma revanche para a vida, mas acontece que a vida não é feita de segundas chances. Algumas pessoas até pensam que isso é arrogância minha, e que não suporto admitir meus erros por orgulho; porém, o que acontece é o contrário: por dentro sou tão insegura que me deixaria engolir pelo mundo, tendo a minha alma subtraída e desfigurada por tudo o que me cerca caso não agisse com esta falsa fachada de arrogância. Ela não passa de uma forma de proteger minha identidade. Forço-me a caminhar de cabeça erguida, nariz em pé e com o peito cheio porque, se não o fizesse, seria derrubada pelo peso que descansa sobre meus ombros, e então não seria capaz sequer de colocar um pé à frente do outro. Costumo fingir que sou perfeita porque é isso que minha alma agonizante queria que meu corpo fosse. E tenho tanta dificuldade em admitir meus erros para os outros porque não suporto enxergar em mim meus defeitos que me levam a cometê-los. E quando alguém além de mim se apercebe dos meus defeitos, passo a ser incapaz de mentir para mim mesma, fingindo que eles não são reais. A maioria das pessoas lida bem com seus defeitos, mas não eu. E essa minha tragédia de não saber me aceitar é o que me leva à minha batalha perdida pela perfeição.


domingo, 10 de setembro de 2017

A Poesia das Cores

      Encaro o mundo através da janela da minha casa e enxergo nuvens brancas na imensidão do céu azul. De pé no declive de um morro, e cercada por montanhas altas, respiro e sinto as cores em toda a sua intensidade. Lá fora, o sol se prepara para partir, lavando as árvores com seu brilho caliente do fim de um dia de primavera. Percebo nas cores sentimentos, e sentimentos são prova taxativa de que existe a vida em pleno vigor. As nuvens, alvas e imaculadas, me passam, por serem brancas, umas sensação de liberdade — porque o branco é a única cor que tem a liberdade de ser a cor que quiser. E se todas as cores moram no branco, então essa cor pode bem ser o espectro das emoções humanas, de todos os sentimentos que temos a capacidade de vivenciar. Por que algumas pessoas tornam-se apáticas? Perco-me em questionamentos e dúvidas enquanto divago sobre a complexidade de ser. E tomo para mim o branco como a cor representativa da liberdade e da plenitude de vida; que, se na pele as cores nada significam além de determinação genética, na alma elas transbordam de significados mais diversos e abrangentes. E se a lua, que em noites comuns é alva, consegue despir-se de sua brancura e trajar um vestido amarelo, alaranjado ou vermelho, evento de noites raras, isso é porque o branco dá liberdade para ela. Porém, como é impossível a existir a perfeição, o branco em si não é inteiro; há uma cor que nele não se cabe, e essa cor é o preto — assim como da lua não sai um único ponto de escuridão. Enquanto isso, ela precisa da escuridão para brilhar, porque claro e escuro se completam, as cores se completam, assim como os sentimentos agradáveis juntam-se em coesão com os menos palatáveis para formar uma consciência vibrante em vida. E, à medida que o sol vai indo embora, observo as nuvens assumirem diversos tons de vermelho, alaranjado, rosa, azul, e roxo; e vejo nelas uma infinita poesia.