segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Panetone, Clarice Lispector e o professor substituto

      Nunca se condene, se deteste ou cultive em seus pensamentos a autoaversão por causa de seus erros. Eles são necessários, imprescindíveis para o crescimento; e às vezes o que julgamos errado, em nossa limitada percepção humana, é exatamente aquilo que Deus, ou o Universo, ou o destino, ou seja lá no que você acredita, planejava para nós.
      Veja bem, hoje de tarde — quatro ou cinco horas após o café da manhã, que substituíra o almoço — chegou a fome. A princípio não queria comer que estava ocupada lendo, tomando notas, pensando em 2018, no futuro, no passado, na vida, no universo e tudo o mais — coma! — veio a ordem salivante do meu estômago afaimado. Levantei-me, refeita em vontade, e fui até a cozinha buscar o que houvesse para comer. Tinha panetone. Naquele momento, não compreendo por que, enquanto olhava para a caixa fechada do alimento, senti dentro de mim um remelexo, uma ânsia por escrever qualquer coisa sobre panetones, com urgência. Ah, calma, a urgência podia esperar. Sentei-me e comi, e que enquanto mastigava vi em minha mente uma figura que só havia encontrado duas vezes na vida: a lembrança de um professor substituto de biologia. Certo dia, no ano de 2017, o professor oficial estava doente e a equipe da escola, com dificuldade para segurar as pontas por si só, chamou um professor de outra sede do colégio para ministrar uma aula. Não me recordo de seu nome, mas ele é uma pessoa difícil de esquecer: vivo e vibrante, com suas tatuagens coloridas e gesticulação larga, dono de uma curiosidade e um assombro com as coisas quase infantil, cheio de energia que ele exterioriza em seu discurso, em seu olhar, em seus movimentos, preenchendo cada silêncio com vitalidade; isto é, os pouquíssimos silêncios que ele cantava. O rapaz, ou homem com rosto de menino, tem enorme conhecimento das coisas, e surpreende porque busca saber além do que é preciso saber, e por isso é um ótimo e completo professor. Então, naquele momento, com a urgência, e sentada, comendo meu panetone, esse professor penetrou meus pensamentos, e ouvi-o refletir, em uma lembrança reproduzida como um filme, algo que ele havia dito diante da nossa surpresa embasbacada com a extensão do conhecimento dele: “Ué, vocês não têm curiosidade com as coisas não?”
      Ele tem, o professor Ícaro — ou Ítalo, acabei de me lembrar, mas não me recordo com exatidão do nome dele — possui uma imensa curiosidade com as coisas, e é a sua curiosidade que leva ao conhecimento porque serve de combustível para a sua pesquisa. Com a ideia fixa de escrever alguma coisa sobre panetone, fui arrebatada pela curiosidade de saber de onde o alimento surgira; e, como é típico do imediatismo da nossa geração tecnológica, a geração dos millenials, coloquei-me a pesquisar, rápida e superficialmente nas páginas líquidas da internet, sobre a origem do panetone. Eis o que eu achei: o alimento surgiu a partir de um erro cometido por um ajudante de padeiro chamado Toni, na Itália por volta do ano de 900. Em seu afã para salvar o pão que ele acreditava ter estragado, acrescentou frutas cristalizadas à massa, amanteigou-a e assou, depois entregou o prato ao seu chefe com o coração na mão. Acontece que a freguesia gostou tanto da receita inusitada que o chefe nomeou o prato como “pane de Toni”, ou pão de Toni, no português, nome que teria gerado a palavra panetone que hoje usamos para nos referir à genialidade que surgiu de um erro.

      Tá, mas o que Clarice Lispector tem a ver com isso?, quem me lê deve estar se perguntando. Ela falou uma vez não sobre erros, mas sobre defeitos. Ela afirmou, em uma carta para sua irmã que “até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” Bem, há muita gente por aí que se molda, tentando se encaixar em certas expectativas sociais, e buscam suprimir em si mesmas aquilo que consideram indesejável, lixando a pele do próprio rosto numa tentativa de eliminar as imperfeições. Nesse processo, acabam se perdendo de si mesmas ao cultivarem no próprio coração mentiras que elas se contam. Acho que com os erros cometidos acontece mais ou menos a mesma coisa: tem muita gente que não assume os erros que comete, procura escondê-los, disfarça-los, enterrá-los sob uma camada grossa de mentiras e desculpas, e aí o estrago está feito: perde-se a oportunidade de aprender com eles. Em vez de assumirem os erros e pensar no que podem fazer diferente da próxima vez para não repeti-los, gastam sua energia encobertando-os e se afogando em culpa. É tão mais fácil fazer como o Toni e entregar a massa adulterada para o chefe, daquele jeito mesmo, e aguardar as consequências que estiverem por vir. Porque assim é que se aprende com os erros cometidos, assim é que se molda, passo por passo, o caminho para a redenção. E de que de que adianta, após agir de modo vexatório, ficar ruminando as próprias ações, cultivando pensamentos de autocondenação cruel? Siga a vida em paz, com a consciência limpa, e deixa que o universo te devolve o que você merecer —  não há necessidade de se autopunir com os próprios pensamentos quando se está para receber de fora vinda de Deus, do Universo, do destino, ou seja lá daquilo em que você acredita a punição ou redenção adequada.

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