A areia remexida pelo vento galgava uma
íngreme subida até o fim da praia, onde salpicava o macio gramado como
pontinhos brilhantes de poeira no imenso tapete verde. A maresia de um
crepúsculo sossegado enchia o ar, e o sol se punha atrás de nuvens coloridas
pelo arrebol. Era o mês de janeiro, das tão ansiadas férias de verão, e, como
esperado, havia uma grande quantidade de turistas naquela bela praia. O mar era
calmo e seguro; as ondas vinham deitarem-se tranquilamente na areia, sem
rochas, pedras ou quaisquer outras barreiras físicas que as separassem do
grande leito dourado.
Como era chegado o fim do dia, o ambiente
antes apinhado de pessoas esvaziara-se bastante; muitos trabalhadores já haviam
ido embora, e os banhistas não tinham interesse na maré de ondas altas ou no
ambiente frio do começo de noite. O que foi bastante oportuno! Que algazarra
seria se a praia estivesse ainda cheia quando aquelas duas feras surgiram.
Porque ali resolveram aparecer, justo num tempo arriscado de época turística,
dois grandes e temerosos animais.
Primeiro veio a onça, que se aproximou não se
sabe de onde; chegou ali na praia e caminhou silenciosamente nos arredores da
terra arenosa. Depois de andar sobre a grama, se achegou ao mar, os macios
grãos de areia acariciando suas patas fortes e ágeis. Uma peculiaridade do
animal, um traço bem exótico, raríssimo de se ver, era sua total ausência de
pintas na cauda. Todo o corpo era pintado com desenhos negros quase esféricos,
mas um tanto sinuosos, exceto a cauda, que era de um tom âmbar completamente
liso. O animal achegou-se à água, e a espuma das ondas tocou suas patas. Ela se
abaixou por um instante para provar o gostinho do mar. As pontas de seus
bigodes logo se umedeceram, e a onça lambeu os beiços peludos várias vezes para
tirar da língua o gosto salgado da água.
Nisso veio se aproximando outro animal:
um grande lobo rajado se acercava da onça por trás, fazendo o mesmo caminho que
ela antes havia feito. As pegadas do felino, marcas de fortes patas com garras
humildes e discretas — não se deixe enganar, pois, é claro, ele tinha as garras
retraídas ao caminhar — se enterravam ainda mais na areia quando o lobo as
pisava, deixando sulcos muito profundos no chão onde suas unhas grandes e
desajeitadas se afundavam.
A onça logo percebeu o lobo se
aproximando, e volveu-se agilmente para encará-lo nos olhos. O lupino se sentou
sobre as patas traseiras. Não parecia intencionado a lutar; não exalava uma
disposição assassina, ou deixava transparecer uma inclinação violenta ou algo
do tipo. Ele apenas ficou lá, encarando a onça de volta com serenidade. O
felino permanecia em guarda, com as orelhas em pé. Gotículas de água pingavam
de seus bigodes tencionados em um esgar de alerta. E o lobo permanecia calmo,
olhando continuamente para os olhos dourados da outra fera.
E assim se passaram vários minutos,
talvez até uma hora ou duas, os animais petrificados, encarando-se. Era uma
longa disputa de olhares, e quem desviasse primeiro perderia — sendo os
competidores um lobo e uma onça, nenhum aceitaria perder. Eles poderiam ter
ficado parados do mesmo jeito por um tempo indeterminado, dias, semanas, ou até
meses, se não fosse por uma corajosa, ou ingênua menininha que, longe dos pais,
corria faceiramente em direção às feras.
Era uma alegre criança de três anos de
idade. Há pouco tempo, talvez dois anos, aprendera a andar, e agora já possuía
a habilidade de escapar sorrateiramente dos pais sobrecarregados e correr em
direção à praia, lugar que ela sempre imaginara ser muito mais bonito à noite
que durante o dia. Ela sempre tivera a curiosidade de andar na praia à noite, isso
era indubitável. Ao findar do ocaso, ela sempre dizia com seu peculiar sotaque
“criancês”:
“Papai! Mamãe! Vamos lá fora ver a praia.
Tá de noite! De noite!”
Era mesmo uma pena que eles nunca
tivessem tempo para levar a pequena menina para um passeio noturno à beira da
praia. Sempre diziam que estavam ocupados enquanto liam uma coisa ou outra; ou então,
enquanto realizavam serviços domésticos do tipo ingrato, daqueles que se
completa em um dia e, no outro, é preciso fazer tudo de novo, como lavar
vasilhas; ou, pior, enquanto permaneciam ocupadíssimos presos à tela de um
computador, que era o que ocorria com mais frequência. E tudo o que ela queria
era conhecer aquele cenário maravilhoso de quando as estrelas brilham sobre o
mar e as ondas se tornam mais altas, lambendo até a beirada da praia; e nessa
hora, a água não está fria, mas morna, tão gostosa... Isso a menina acabara de
descobrir.
Ela havia feito como os dois animais:
caminhara primeiro sobre a grama, para depois descer pela praia até a beirinha
do mar — se bem que, naquela hora, já não havia tanto caminho para a menina
percorrer, pois as ondas vinham altas de modo a diminuir o tamanho da praia,
cobrindo de água uma grande área.
Os animais ignoravam a maré e permaneciam
quietos onde estavam desde a hora do crepúsculo. A essa altura, a onça estava
quase completamente encoberta pelas ondas incessantes que vinham com mais ânimo
do que durante a calmaria matutina do mar. E o lobo não tinha muito privilégio:
ao passo que o felino estava de costas para a água, ele estava bem de frente, e
as ondas batiam direto no seu peito, respingando gotas salgadas em seus olhos
que começavam a arder.
Que sorte! Dois bichinhos fofos! A menina
aproximou-se dos animais e soltou um gritinho de prazer, o que chamou a atenção
de ambos. Ela havia chegado muito perto, mas mantinha uma distância grande o
suficiente para que as ondas não a tocassem, pois assim não seria arrastada
para o fundo do mar. Tinha apenas três anos, mas não era tola. Aquela menina nascida
no litoral sabia muito bem que algo ruim poderia lhe acontecer caso chegasse
perto demais de ondas violentas como aquelas.
Mas ela não sabia que, pior que as ondas,
eram as duas feras que estavam bem ali, pertinho dela; as duas feras que ela
achava serem dois bichinhos fofos.
Quando a onça percebeu a presença da
menina, depois de ouvir o grito agudo de felicidade que ela havia dado, abanou
ameaçadoramente a cauda sem pintas. O lobo também sabia que a criança estava
ali, atrás dele, mas não se virou para olhar. Estava muito ocupado com o jogo
visual que ele e o felino travavam por algum orgulho selvagem. Não obstante,
visto que ela não iria embora, as duas feras, de mútuo acordo,
interromperam o combate e saíram do alcance das ondas. A menina pulou de
alegria, aumentando ainda mais o sorriso que trazia no rosto.
Na casa dela, lugar que ela deixara há
alguns minutos, os pais foram tomados por um desagradável aperto no peito ao
darem pela falta da filha. A mãe, uma jovem e bela mulher, já havia procurado
pela pequena por toda a casa, com a ajuda do pai. Ela chegara àquele ponto de
total desespero pelo qual uma pessoa passa quando perde algo tão precioso
quanto um filho — ela havia sucumbido às lágrimas, e limpava o rosto obstinadamente
enquanto gritava o nome da menina. Mas seu rosto continuava sempre úmido, pois
por mais que ela insistisse em enxugar as lágrimas, elas persistiam em cair.
Os pais já haviam procurado pela casa
inteira umas cinco vezes quando, de súbito, veio à mãe um sentimento forte —
uma certeza. Sim, certeza! Ela sabia,
tinha certeza de onde a menina estava.
— Ed! — disse. — Ed, eu sei onde ela
está!
A mãe aflita não precisou dizer mais uma
palavra. O pai percebera ao olhar nos olhos dela. Ainda assim, ela terminou o
que dizia, mas sua voz foi acompanhada pela dele:
— Na praia! — os dois disseram em
uníssono.
Saíram de casa o mais depressa que
puderam, e sequer trancaram a porta da frente, apenas a encostaram, e desataram
a correr pela areia.
Enquanto isso, a filha, maravilhada pela
calma dos dois “bichinhos fofos”, caminhava cegamente em direção aos animais. O
lobo continuava demonstrando a mesma serenidade pelo olhar, mas a onça... Os
olhos dela rutilavam amiúde com uma luz sinistra, em um tom anormal de vermelho
que se sobressaía na noite como o arrebol se sobressai no céu. A criança chegou
perto, perto e mais perto da onça.
A tensão parecia crescer entre os
animais. A menina, cega pelo seu deslumbre, aproximou-se o suficiente do felino
para que pudesse tocar seu focinho. E então, num gesto brincalhão e
inconsequente...
...ela puxou com toda a força que possuía
em suas mãos infantis os bigodes da onça.
O
animal repuxou os beiços em um esgar de raiva, e mostrou os dentes para a
menina, o que apenas fez com que ela desse outro daqueles altos gritinhos
inocentes de alegria. A onça abriu a boca em um rugido, exibindo duas fileiras
de presas afiadíssimas, e salientou as garras, preparando-se para o ataque.
Com uma pata, ela arranhou a saia da
pequena, rasgando o tecido de modo a prender nele as poderosas garras. O felino
puxou o vestido com violência, o que fez a menina se desequilibrar e cair.
Afundou a pata na areia de modo a mantê-la presa pela barra do vestido,
e levantou a outra pata para rasgar aquele delicado rostinho e dilacerar
aquelas mãos que se atreveram a puxar seus bigodes.
A onça rugiu e desceu a pata mirando o
rosto da menina.
Porém, uma fração de segundo antes que
ela pudesse provocar qualquer ferimento, o lobo aparou o golpe com seu flanco,
sendo atingido pelas garras afiadas. Mas não foi ferido: ele subitamente parecia
ter crescido, pois estava três vezes maior que a onça; e seu pelo, que
aparentemente tornara-se mais espesso, recebeu sozinho o golpe, protegendo a
pele do lupino. A violenta investida resultou apenas em um serviço assimétrico
de tosa.
A onça e o lobo lutaram ferozmente por
alguns segundos, mas logo o lobo subjugou a adversária — afinal, estava três
vezes maior que ela. Depois de uma série de mordidas e patadas, a onça aceitou
sua derrota e, resignada, colocou-se a assistir às ações do lobo. A menina
chorava de dor. Quando a onça rasgou seu vestido, as pontas das garras
atingiram de raspão a sua perna. Ela estava sentada, e as gotas de sangue
escorriam vagarosamente das feridas em sua pele, pintando a areia ao redor de
um intenso tom bordô. A ferida estava salpicada de grãos de areia que só faziam
arder.
O choro estridente da menina foi o alarme
que os pais precisavam para encontra-la. Correram direto para onde ela estava,
mas ao avistarem os dois animais, estacaram petrificados pelo medo.
— Ed! Ed, o que vamos fazer? — disse a
mãe.
Ela continuava a chorar, e as feras
encaravam obstinadamente os dois recém-chegados. Aliás, diga-se por dizer, os
dois animais eram mesmo muito bons nisso.
— Calma — disse o pai. — Não faça nenhum
movimento brusco. Vamos andar com calma até a Ariel, pegá-la e ir embora daqui.
Vamos embora devagar enquanto ligamos para o controle de animais.
Os dois deram as mãos, mas a mãe
continuava muito assustada ante a ideia de perder a filha para duas feras. E
eles não tinham nada para se defender — um porrete, uma pedra, um pedaço de
pau, uma faca, ou o que fosse. Estavam completamente inermes, de mãos abanando.
Eles começaram a se aproximar da menina,
sempre de frente para os animais. Ambos o pai e a mãe suavam frio, mas ele
parecia ter maior autocontrole que ela. Ainda estavam a uns oito metros da
menina quando a mulher, não podendo mais se conter, soltou a mão do pai e
disparou em direção à filha.
— Zima! NÃO!
A onça foi ao encalço dela, engajando-se
no que foi uma curta perseguição: o lobo, tendo vencido a luta, mais uma vez
atrapalhou os planos da adversária ao colocar-se entre o felino e a mulher. A
mãe havia se encolhido em desespero ao ver a onça saltando em sua direção. Em
um reflexo, se agachou de costas para o animal e fechou os olhos, esperando
pelo momento em que sua carne seria rasgada por garras e presas assassinas...
Mas esse momento não chegou.
— Zima! — o homem correu em direção à
mulher e a ajudou a se levantar, e, amparando-a, caminhou nervosamente em
direção à filha. Porém, ele não pôde alcança-la, pois assim como fizera com a
onça, o lobo colocou-se entre a menina e os pais. O lupino volveu-se para a
menina, posicionando-se de costas para o casal e para a onça que, submissa pela
derrota, apenas observava.
Ele se aproximou da criança devagar.
Farejou-a, cauteloso, e tocou a testa dela com a ponta do focinho. Ela
interrompeu o seu choro, curiosa com o ato de gentileza do “bichinho” que já
não parecia tão “fofo” assim. O lobo apenas ficou ali, parado, enquanto a
menina aos poucos tomava liberdade com ele. Ela o acariciava de leve, para
depois ir se tornando mais intensa. Deu uma puxada sutil nos pelos do animal,
que continuou sossegado. Então, gargalhou alegremente e deu um leve tapa no
focinho do lobo em um gesto de carinho.
Os pais dela observavam a cena com a
respiração entalada sofregamente na garganta.
Ela se levantou, esquecendo-se
momentaneamente da ferida em sua perna, e passou os braços em volta do pescoço
do lobo, abraçando-o. Ele se abaixou e deitou o focinho sobre as patas para que
a menina subisse em seu pescoço, e assim ela fez. Pois o lobo se levantou e
caminhou devagar, mas a passos firmes, até o casal. Quando já não existia
distância entre a fera e os pais, o animal abaixou-se novamente para que a
criança pudesse descer, e quando ela saltou para a areia, sentiu de chofre a
dor de sua ferida voltar com toda força. A perna agadanhada não conseguiu
sustenta-la e ela caiu de rosto na areia. Começou a chorar, e o pai apanhou-a
do chão.
Os três foram embora, e sabiam que os
olhos dos animais continuaram cravados em suas costas mesmo depois que
ultrapassaram a linha do horizonte. Porém, antes que isso acontecesse, a mãe espiou
atrás de si uma vez. E seus olhos encontraram diretamente os olhos do lobo, que
não havia parado de encará-la por um segundo. A onça também a fitava, com cara
de poucos amigos. Sabe, dizendo só por dizer — aliás, melhor, apenas repetindo
o que eu havia dito antes, fato que me parece bastante interessante — aquelas
duas feras eram realmente muito boas em jogos de olhares.
A mãe, ao encontrar olhares com o lobo, cambaleou
completamente aparvalhada por alguns momentos. É que os olhos dele pareceram normais
por um instante; mas ela se distraiu, piscando por uma fração de segundo, e
quando o encarou novamente, os olhos dele não se pareciam com olhos
propriamente ditos; a córnea, outrora branca, assumira um intenso tom âmbar, e
o animal não mais possuía pupilas. Em lugar delas, seus olhos amarelados se
forraram por vários pontinhos pretos, bem menores que uma pupila normal, que se
assimilavam às pintas que forram a pelagem de uma onça. E, depois de piscar,
quando a mulher abriu novamente os olhos, ela não pôde ver a onça em lugar
algum.